QUEM VAI CHORAR PELO ÓLEO DERRAMADO NO SÃO FRANCISCO ? - Mariama Correia

 



RIO SÃO FRANCISCO 

- Fotografia de Ailton Cruz 

(www.apublica.org) 


Quando o óleo começou a aparecer nas praias brasileiras, em 2019, eu trabalhava como repórter no Recife (PE). As grandes manchas de petróleo chegaram sem aviso prévio. Densas, navegavam como submarinos debaixo d'água, driblando o monitoramento de satélites. Só emergiam quando já estavam bem próximas da costa, surpreendendo pesquisadores e governos.   


Sem qualquer equipamento de proteção, voluntários se lançavam ao mar e se digladiavam com enormes massas viscosas e tóxicas para fazer a limpeza das praias. Muitos deles mantiveram, durante meses, sinais de intoxicação, como manchas de pele.  Depois de muito trabalho, cerca de cinco mil  toneladas de óleo foram tiradas de mais de mil pontos no litoral em 11 estados, nove deles no Nordeste. Pescadores perderam renda, comunidades tradicionais foram  contaminadas, como contei na minha primeira reportagem para a AGÊNCIA PÚBLICA. Mas os estragos causados pelo maior crime ambiental em extensão da história do Brasil jamais foram totalmente mensurados, muito menos  sanados. Assim como muitos problemas que acontecem nos estados nordestinos, esse episódio e suas consequências foram esquecidos por boa parte da mídia de alcance nacional.  

Sinto calafrios só de pensar que uma tragédia como  essa pode acontecer novamente. Mas sei que, em termos de Brasil, onde a exploração ambiental desenfreada provoca tragédias anunciadas como os recentes recentes acidentes em Minas Gerais, reprises de horror são comuns. 

Três anos depois do grande derramamento  de óleo no litoral brasileiro, a petrolífera multinacional ExxonMobil está treinando pescadores para lidarem com possíveis vazamentos de petróleo na foz do Rio São Francisco, onde ela planeja iniciar a perfuração de 11 poços de óleo  e gás. Se acontecer algum acidente por ali, mais de 50 unidades de conservação ambiental podem ser diretamente atingidas. Comunidades tradicionais e pesqueiras seriam contaminadas em aproximadamente dois dias, segundo os próprios estudos da empresa.   

A reportagem que publicamos esta semana mostra os  riscos do projeto, que ainda não tem licença do Ibama. A apuração começou no fim do ano passado, quando visitei os municípios da região do estuário  do  rio São Francisco, entre Sergipe e Alagoas.  Depois de tantos meses trancada em casa, em trabalho  remoto, foi muito bom  poder conversar presencialmente com  moradores de comunidades pesqueiras potencialmente atingidas. Eles não foram consultados pela ExxonMobil, mas certamente sofrerão os danos, caso algum  derramamento aconteça.    

Essas pessoas já conhecem bem os  estragos que um acidente envolvendo petróleo pode causar, porque, em 2019, o óleo também chegou à foz do São Francisco. No  quilombo  de Brejão dos Negros, em Sergipe, pescadores falaram do  medo de uma nova contaminação do mangue,  fonte de renda e de alimento das comunidades. Nas praias de Alagoas, barqueiros e pescadores lamentaram a paralisação do turismo, enfraquecido desde então e não recuperado nos anos de pandemia.  Também por lá, organizações  dedicadas à preservação ambiental disseram ainda encontrar óleo depositado no  fundo do  rio, embrenhado nos mangues e grudado nos corais. 

Infelizmente, logo depois da minha volta a São Paulo, ocorrida em uma janela de relativa tranquilidade da pandemia, agora estamos vivendo  uma nova onda de covid-19.  Revendo  os registros que  fiz nesses dias ungidos pelas águas  do São  Francisco e do mar, sinto saudade do vento no  rosto, das paisagens litorâneas, das conversas sob  a sombra de  pés de manga e tamarindo, do  peixe fresco  servido nos  restaurantes.  Penso em como é triste ver as riquezas naturais do nosso país sob constante ameaça. Lembro do abatimento dos pescadores artesanais,  do cansaço presente na fala de quem defende a preservação daqueles territórios, resistindo à pressão de poderosas corporações.  

Hoje o  velho Chico, que nasce  em Minas, vai sofrendo com a exploração das hidrelétricas e outras interferências predatórias no seu curso até desembocar no oceano.  Enfraquecido, ele não  consegue mais conter o avanço da  água do mar. Quem vive  às suas margens  muitas  vezes depende de caminhões pipa porque a água está salgada. A pesca já não é mais tão produtiva  como anos atrás.  A quem se destina esse modelo  de desenvolvimento ? Quem vai chorar pelo óleo derramado na foz do São Francisco  ? 

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Texto da editora e repórter MARIAMA CORREIA  

- www.apublica.org/autor/mariamacorreia 

(Transcrito da newsletter dos aliados / AGÊNCIA PÚBLICA) 

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